Heterotopia* Animada

Rebordosa
re.bor.do.sa 
sf (re+bordo+oso, no fem) 1 Alarido, gritaria, conflito, confusão. 2 Barulho, pancadaria, arruaça. 3 Admoestação, censura, reprimenda. 4 Situação desagradável, contingências difíceis. 5 Doença grave. 6 Reincidência de moléstia.

Rê Bordosa
1. Mulher de, aproximadamente, 40 anos. Alcoólatra, ególatra, sem noção e ninfomaniáca. 2. Personagem de quadrinhos, criada por Angeli, que fez muito sucesso entre 1970 e 1987. 3. Assassinada por seu criador.

Afinal de contas, "do que estamos falando", você deve se perguntar. Estamos falando do curta-metragem em animação Dossiê Rê Bordosa, dirigido por César Cabral, que pretende investigar os motivos e motivações que levaram Angeli assassinar Rê Bordosa

Conforme já falamos anteriormente, Rê Bordosa foi uma personagem de quadrinhos, criada por Angeli durante a década de 70. Desbocada e desprovida de bom senso, Rê era conhecida por suas loucas aventuras e total desprendimento quanto a amarras sociais e convenções, de modo que era adepta do sexo casual, de drogas e muito mais. Para completar, a personagem encerrava as tais loucas aventuras, na banheira de casa, tomando um vinho e curando a sua ressaca moral, enquanto filosofava sobre si mesma e sobre sua vida e motivações.
Durante o período em que as suas tirinhas foram produzidas, Rê fez muito sucesso, até que foi subitamente assassinada por seu criador e nunca mais redesenhada por ele. O que o curta metragem procura, então, é dá uma explicação do motivo deste "cruel" assassinato e ainda imergir na mente do "sanguinário" Angeli.
Rê e Angeli se encontram pela primeira vez
Para tal, César criou um produto original e muito interessante, construindo um falso documentário, em animação e em cima de um levantamento de entrevistas reais sobre a personagem e seu criador. Ele vai além, trazendo as personagens da ficção, como a própria Rê Bordosa, Bob Cuspe e Bibelô para contracenarem com os entrevistados: Angeli, Laerte, Marcia Aguiar e Paulo César Peréio. Assim, todos os personagens foram transformados em bonecos de massinha, estilo A Fuga das Galinhas, mas mantendo um desenho bastante caricaturado e que, evidentemente, buscava no traço de desenho do próprio Angeli a inspiração para que eles ficassem contextualizados. O trabalho foi todo desenvolvido sob a égide do stop motion, que basicamente consiste em bater 24 fotos para compor um segundo, sendo que a diferença entre cada uma dessas fotos são movimentos milimetricamente modificados que, postos juntos, formarão um movimento fluído. Além disso, eles se utilizaram da técnica de goma de mascar, criada por Walt Disney, onde as bocas se movimentam apenas com os fonemas principais, de modo que, não importante em qual língua o filme seja dublado, sempre parecerá original, fora que é muito menos complicado na hora de juntar as imagens aos áudios.

Mas passando sobre essas questões mais técnicas e curiosas (pelo menos para essa que vos fala), o que o Dossiê Rê Bordosa tem de tão interessante, assim? Especialmente para uma geração que, como a minha, ainda não tinha ouvido falar dessa personagem, até se deparar com o curta. Bom, César Cabral foi responsável por criar um documentário que, na verdade, não é documentário, com uma rica estética e narrativa envolvente, que, longe de parecer algo bem chato (como algumas pessoas tendem a pensar sobre documentários), na verdade é divertido e consegue transpassar, até para quem não conhece, a riqueza da personagem.
César traz elementos do documentário tradicional, de programas investigativos, como Linha Direta e ainda brinca com o lado escandaloso que envolveu o caso de Rê, ao trazer falsas matérias com uma narração em off quase que sensacionalista, expondo todo o drama da forma como a morte da personagem aconteceu, assim como brinca com a edição, construindo Angeli como um criminoso a sangue frio. Todos os depoimentos foram deliberadamente editados para que o 'autor do crime' fosse pintado como um sádico e também um hipócrita, que cria uma personagem com um modelo feminino que ele mesmo despreza.
Dos questionamentos, ainda restam dúvidas: Foi um crime passional? Foi porque Rê estava ofuscando a fama de Angeli? Ou talvez fosse porque ele simplesmente cansou dela? Ao final, parece que todas as respostas são afirmativas, ao mesmo tempo em que não, e esse é um dos grandes divertimentos aqui.
Para quem não sabe, Dossiê Rê Bordosa ganhou diversos prêmios e reconhecimentos, tanto no Brasil, quando no exterior. Aqui você encontra todas as informações sobre o curta metragem. E se você quiser assistir ao curta, basta dá o play aqui embaixo e se deliciar com 16 minutos de Rê Bordosa.

*Heterotopia é um conceito de Michel Foucault, autor da contemporaneidade, que nomeia desta forma a junção de dois mundos possíveis em um mundo possível (ou vice-e-versa), tal como César construiu em seu falso doc em animação, quando colocou personagens fictícios e reais, em um terceiro mundo, onde eles poderiam conviver.  

Um comentário

Ana Carolina disse...

Oie Ana,
Acredita que eu não conhecia o Rê Bordosa? Mas vou assistir o curta e entender melhor, quem sabe eu consiga compreender o porquê de Angeli ter assassinado Rê. Adorei o post e amo o jeito que você escreve.
Beijos
http://diariodeumalivromaniaca.blogspot.com.br